Aliado fiel de Lula, Wellington Dias, de 63 anos, o ministro do Desenvolvimento Social, foi escolhido a dedo pelo presidente para assumir a pasta que controla o Bolsa Família, o programa de transferência de renda que virou selo da gestão petista. As mudanças que o ex-governador do Piauí promoveu nos critérios de distribuição do benefício (no qual, aliás, conta que identificou desvios), de modo a abranger mais gente, ajudaram a tirar recentemente o Brasil do Mapa da Fome da ONU. O feito embute um dado a ser celebrado: indica que 10 milhões de brasileiros deixaram a pobreza extrema. Aos olhos de Dias, porém, isso já não causa o mesmo impacto nas urnas. Engajado no esforço para manter o PT no comando do Planalto, uma das missões dele é organizar ações para atrair a tão decisiva fatia evangélica do eleitorado, onde a esquerda ainda encontra resistência. Dias também prega um olhar mais cuidadoso do partido para o eleitor de centro, enfatizando a necessidade de a sigla absorver melhor os anseios de uma população hoje polarizada. “É a democracia que estará em jogo na eleição de 2026”, acredita.
O que explica a recente saída do Brasil do Mapa da Fome? A economia girou, fomentando negócios e criando mais empregos. Não podemos desprezar também o peso de programas sociais, como o Brasil sem Fome, e iniciativas de transferência de renda, entre elas o Bolsa Família e o recente Acredita no Primeiro Passo, voltados para a superação da pobreza. É uma rede de proteção que vem trazendo resultados na direção que considero correta. No primeiro semestre, cerca de 1 milhão de beneficiários deixaram o Bolsa Família porque aumentaram seus ganhos e melhoraram de vida.
O país já tinha deixado o Mapa da Fome antes, em 2014, e acabou voltando. Esse risco se mantém? Estamos concentrados em implantar um modelo que traga segurança alimentar de forma definitiva. A primeira grande mudança já foi feita em 2023, quando passamos a garantir um valor per capita mínimo no Bolsa Família. Agora, quem entra pela primeira vez no Cadastro Único só sai dele se deixar a pobreza, com renda três vezes maior do que o benefício recebido. Assinar carteira de trabalho ou regularizar o próprio negócio não é mais razão para deixar de ganhar o recurso. Há ainda um sistema em que a pessoa pode voltar a ter ajuda automaticamente caso perca o emprego ou sofra queda na renda. É um colchão de proteção contra a miséria.
Como avalia as críticas de que a base do programa se expandiu de forma indiscriminada? Em parceria com o Tribunal de Contas da União, auditamos mais de 4 milhões de benefícios concedidos no Auxílio Brasil, do governo passado. O programa se baseava em um aplicativo cheio de fraudes. Identificamos ali inúmeras irregularidades, como falsificação de documentos e gente com renda elevada na lista. Estamos atentos a isso. Começamos nossa gestão pagando 22 milhões de pessoas e fechamos a folha de julho com 20 milhões, o que é resultado do cerco a fraudes e da redução da pobreza.
“O Brasil mudou e as pessoas querem empreender. Desde 2023 registramos o surgimento de 9 milhões de negócios. Mais da metade é composta pelo público do Bolsa Família”
O Banco Central mostrou que beneficiários do Bolsa Família gastaram 3 bilhões de reais com apostas. Que medidas já foram tomadas a respeito disso? Somente 3,4% dos cadastrados jogaram. Proibimos que o cartão do benefício seja aceito nas bets, uma medida que acaba de ser homologada pelo STF. Por outro lado, a Constituição, afinal, garante a quem recebe o dinheiro que o use como achar melhor.
Não são poucos os que dizem que o governo adota critérios políticos, e não técnicos, para a concessão do benefício, de olho nos votos que o programa traz. Isso ocorre em algum grau? Não. Uma parcela considerável da população tem essa visão porque nunca experimentou a fome. Trabalhamos seguindo evidências do que realmente contribui para o combate à miséria. E parece funcionar. Registramos mais de 4 milhões de novos postos de trabalho nos últimos dois anos, sendo que 91% dos que conseguiram uma vaga estão no Cadastro Único, e de lá podem acabar saindo por não precisar mais do benefício. Estamos não só dando o peixe, mas ensinando a pescar por meio de capacitação que vai viabilizar também o anzol, a vara e o barco.
Por que esses avanços que o senhor elenca não têm causado o impacto positivo esperado à imagem do governo? Todas as pesquisas apontam que a maior aprovação do presidente Lula se dá na faixa de renda inferior a dois salários mínimos, justamente o público que atendemos. O cenário mais geral é que há uma enorme tensão no país. O quadro não se alterou de 2022 para cá. Vivemos uma divisão que desgasta a classe política de modo amplo. Levantamentos que avaliam os outros poderes sinalizam para um questionamento sobre todas as instituições democráticas.
As pesquisas têm sucessivamente revelado novos anseios do eleitorado, como o desejo de um Estado menor e mais condições para empreender. O PT precisa rever suas bandeiras? Sim. A nova direção do partido, encabeçada por Edinho Silva, prega essa reformulação, com a qual eu concordo. O Brasil mudou, e as pessoas querem empreender, se tornar empresárias, autônomas. Desde 2023, registramos o surgimento de 9 milhões de negócios. Curiosamente, mais da metade é composta pelo público do Bolsa Família, um fenômeno que vale ser compreendido melhor.
O tarifaço do governo Donald Trump pode complicar o cenário eleitoral para Lula, já que seu efeito na economia tende a se agravar? É claro que o estrago é grande, mas, do ponto de vista do mercado interno, o impacto deve ser menor. Acabamos de adotar medidas, envolvendo o Ministério do Desenvolvimento Social, para compras de produtos perecíveis daqueles fornecedores que não conseguirem concretizar a exportação para os Estados Unidos. Além de evitar o prejuízo, garantimos alimentação escolar de qualidade para crianças de 36 000 escolas.
Qual o caminho para minimizar os danos das altas tarifas? Grande parte dos itens tarifados é demandada por diversos países no mundo — carne, café e frutas entre eles. Enfrentaremos uma fase bem dolorosa, mas o governo aposta na abertura de novos mercados.
O senhor tem aconselhado o presidente Lula sobre esse assunto? Tenho participado de algumas discussões com Lula. Essas tensões não parecem que vão se dissipar no curto prazo. Os Estados Unidos vêm fazendo ataques a parceiros históricos da América Latina, como México e Colômbia, e até à Índia, onde não se pode dizer que há um governo de esquerda. Isso só reforça o enfraquecimento de organismos vinculados à ONU e, por outro lado, tem tudo para fortalecer blocos alternativos como o Brics.
Acha que o presidente deveria ligar para Trump? Lula está disposto, como sempre diz, ao diálogo. O contato, porém, precisa ser organizado nos moldes da diplomacia internacional. Não é razoável que uma aproximação dessa natureza seja utilizada para fazer desfeita ou para se transformar em uma tentativa de humilhação ao país. O Brasil respeita o povo americano e quer manter uma boa relação com os Estados Unidos, mas também precisa ser respeitado.
Como o tema da soberania tem influenciado o debate político? Estamos vivendo novos tempos. Há uma divergência fundamental na arena política sobre esse ponto tão importante. A defesa de um país que protege trabalhadores e empresários que podem ser prejudicados com as medidas do Trump se confronta com a postura de quem presta continência à bandeira americana. Estamos diante de dois grupos: os que assumem compromisso com a soberania versus os traidores da pátria.
“Nas eleições de 2026, o importante para o PT será garantir um centro robusto correndo junto com a esquerda. É a democracia brasileira que está em jogo”
A eventual prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro pode acabar servindo de impulso à oposição? Na verdade, vejo a oposição saindo enfraquecida do episódio, principalmente pela maneira como reage. Olhe o projeto da anistia: quem o defende até se esqueceu das pessoas que participaram do 8 de Janeiro em Brasília. Agora, tudo gira em torno do propósito de livrar Jair Bolsonaro. Claro que a prisão provoca um tensionamento, mas não é razoável considerar normal um insulto ao Supremo por parte dos aliados do ex-presidente. Somos defensores das instituições, com todos os aperfeiçoamentos que elas possam demandar. Mas quem defende a democracia é o STF.
Segundo os últimos números, o páreo presidencial segue apertado. Como avalia a disputa que se avizinha? Nos últimos meses, noto que houve uma mudança em relação à eleição passada, de 2022, quando a extrema direita ainda era muito forte e a esquerda andava um pouco isolada. Graças à habilidade de Lula, conseguimos fazer uma aliança com o centro, representado pela entrada do vice-presidente Geraldo Alckmin. E esse espectro está cada vez mais distante da turma da extrema direita, o que é bom para o país. O importante, em 2026, será garantir um centro robusto correndo junto com a esquerda. É a democracia que está em jogo.
Mas diversos partidos do Centrão que compõem o governo, como União Brasil, PSD e PP, não se cansam de dar mostras no sentido contrário. Como lidar com essa ambiguidade? A eleição no Brasil se organiza pela lógica dos estados. Há lideranças do Progressistas, do PL, do Podemos, do PSDB, do PSD e do União Brasil que são da oposição, e outras são da base do governo. Isso ocorre pela relação estabelecida entre governadores e prefeitos em diferentes regiões do país. No início do ano que vem, a partir da janela partidária, aposto em uma reorganização do tabuleiro que nos dará a oportunidade de ampliar nossas alianças nacionalmente.
Seu ministério firmou parcerias com igrejas evangélicas e tem tentado se aproximar desse segmento cada vez mais decisivo em eleições. Por que é tão difícil para o PT atingir esse público? Infelizmente, muitos líderes de igrejas passaram a dar prioridade à política, que se sobrepõe até à palavra de Deus. Considero a orientação do presidente Lula correta. Ao contrário do que muitos dizem por aí, os governos do PT sempre respeitaram as igrejas e a religião. Em todas as gestões, tomamos medidas para garantir a liberdade do exercício da fé e houve crescimento do número de templos evangélicos.
É possível romper a resistência ao partido, muitas vezes relacionada à pauta de costumes? Estamos fechando parcerias com várias denominações religiosas, o que nos permite alcançar, através de seus líderes, lugares onde o governo não chega, como favelas e locais mais longínquos.
Não é preciso estabelecer um limite para essas relações entre política e religião no país? Trabalhamos com o que está presente na própria palavra de Deus: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. A Constituição faz essa clara separação do Estado e assegura a independência das igrejas. Todas as vezes em que um interferiu no outro tivemos problemas graves no Brasil e no mundo. Não é isso que queremos.