Foto: Divulgação/Semas/PARA
No coração da Amazônia, veias têm sido abertas, cada vez em maior escala, com exploração de madeira, desmatamentos e queimadas. Essa destruição coloca em risco o bloco da floresta amazônica até então mais preservado.
O avanço da devastação no estado do Amazonas preocupa pesquisadores. Eles apontam que o momento de agir para impedir a pulverização dos danos na área é agora.
A situação é apavorante, diz Marco Lentini, coordenador-sênior de projetos do Imaflora. "Pode virar uma tragédia."
A expansão da derrubada da floresta no Amazonas fica visível nos dados atualizados constantemente pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Agosto de 2021 é um exemplo. Foi o mês com o maior número de queimadas já registrado no estado do Amazonas. Com 8.588 focos de calor, agosto deste ano superou o recorde anterior, agosto de 2020, que, por sua vez, tinha superado agosto de 2019.
O fogo na Amazônia e em outros biomas brasileiros tem uma relação muito próxima com o desmatamento, sendo usado, costumeiramente, como última etapa do processo de desmate, para queimar a vegetação derrubada e, assim, limpar a área.
Ou seja, sem escapar do ditado, onde há fumaça, há fogo -e é provável que tenha havido também desmatamento.
Por isso, não chega a ser surpreendente que a derrubada de vegetação também venha crescendo ou, pelo menos, mantendo-se em patamares elevados no estado.
Nos últimos anos, o Amazonas sofreu uma maior devastação, superou Rondônia e se isolou como o terceiro estado com maior grau de desmatamento, segundo o sistema Prodes, do Inpe.
Mas o dado do Prodes que será divulgado nos próximos meses pode trazer uma nova mudança, com o Amazonas pulando para o segundo lugar no ranking de desmate, preveem cientistas. Até agora, esse posto pertence a Mato Grosso. Se isso ocorrer, o Amazonas só perderá a primeira posição para o também gigante vizinho Pará.
A ultrapassagem provável já foi apontada pelos dados do Deter (sistema do Inpe destinado a dar alertas de desmate e auxiliar na fiscalização ambiental) referentes ao período entre agosto de 2020 e julho de 2021.
"O Amazonas me assusta mais por ter uma área muito grande de terra pública que está ali, ao léu, sem governança", diz Ane Alencar, diretora de ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). "É o coração da Amazônia."
Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, o potencial de perdas no estado é enorme.
"É uma área pouco ocupada, e há o medo de que seja invadida e perdida para grileiros", afirma Alencar.
Lentini, aponta a baixa quantidade de pesquisas científicas desenvolvidas no estado e, consequentemente, a biodiversidade local que nem sequer é conhecida.
"Ali tem um estoque de vegetação florestal que não tem nos outros estados", afirma Antônio Fonseca, pesquisador do Imazon. "Preocupa porque está adentrando o maior remanescente florestal da Amazônia legal."
Os principais pontos de desmate no Amazonas ainda estão concentrados ao sul do estado, próximos a Mato Grosso, Rondônia e Acre, em regiões com forte presença de atividade madeireira.
Segundo o especialista do Imaflora, a extração madeireira funciona como "ponta de lança". Estradas são abertas na floresta em busca de árvores com elevado valor comercial. A partir dessas vias, facilitado por elas, espalha-se o processo de ocupação, com desmatamento, queimadas e grilagem.
No sul do Amazonas, a atividade de exploração de madeira teve um crescimento expressivo nos últimos anos. Lentini ressalta que parte do processo é legal, mas que não se pode ignorar a atuação ilegal nesse tipo de atividade.
A região também pode ser vítima de "vazamentos" de desmatamento. Fonseca explica que, de forma geral na Amazônia, atores que colocam abaixo a floresta podem se deslocar de áreas com intenso desmatamento e, por consequência, uma presença mais forte de fiscalização para outras com menor vigilância.
Por fim, o especialista do Imazon afirma que a criação da Zona de Desenvolvimento Sustentável dos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia, projeto conhecido como Amacro, também pode já estar começando a influenciar o desmate ligado ao roubo de terras.
A Amacro, com participação de governos estaduais, da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), tem a intenção de desenvolvimento de uma área de mais de 30 municípios do sul do Amazonas, leste do Acre e noroeste de Rondônia -regiões que já têm, em geral, forte presença de desmatamento associado ao agronegócio.
O programa diz ter a intenção de promover regularização fundiária, diminuição de desmate e queimadas, além de investimento em infraestrutura, como rodovias, hidrovias e energia sustentável.
"Entra a questão de instalação de obras de infraestrutura na região, o que sempre acaba valorizando a posse da terra. Uma hipótese é que os desmatadores que estão avançando nessa região já estão vislumbrando que lá na frente essas terras vão ter um aumento de valor", diz Fonseca.
Como razões para esse avanço sobre a floresta do Amazonas, os pesquisadores ouvidos apontam ainda para a fragilidade da governança ambiental no estado e para uma menor presença de entidades organizadas da sociedade civil.
Quanto às soluções, eles apontam caminhos que já existem, principalmente o monitoramento por satélite. O problema, porém, é a perda de investimentos e a capacidade de ação nos órgãos ambientais, que nos últimos anos passaram por um processo de enfraquecimento.
Tem peso também na situação atual, eles avaliam, a sensação de impunidade dos criminosos e o discurso do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que pode ser lido como passe-livre para crimes ambientais. O presidente é abertamente favorável a práticas com elevado impacto socioambiental, como mineração em terras indígenas -que estão entre os locais mais preservados do país.
Bolsonaro, sua equipe e apoiadores, em diversos momentos, também já minimizaram os crimes de desmatamento ilegal e queimadas na Amazônia. O presidente chegou até mesmo a desautorizar ação de fiscalização do Ibama e questionar a destruição de maquinário usado para devastar a floresta.
Mais recentemente, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tomou partido de empresas de extração de madeira que tinham tido toras apreendidas pela Polícia Federal -operação tida como a maior apreensão de madeira ilegal da história.
Segundo Alencar, do Ipam, ações estratégicas e coordenadas de inteligência são cada vez mais necessárias para frear as quadrilhas envolvidas.
"Se as pessoas tiverem a percepção de que os peixes grandes vão ser pegos, os peixes pequenos vão ficar mais cabreiros de invadir terra pública", diz Alencar.
"Para isso é preciso que o Ibama recupere a sua capacidade de atuação, com toda a liberdade possível de fazer o trabalho que fazia antes. E com apoio da Polícia Federal, do Exército e articulado com as secretarias de meio ambiente e com as polícias ambientais estaduais. Isso tudo tem que funcionar de forma articulada."
Segundo Fonseca, os esforços precisam ser direcionados para a região de fronteira do Amazonas, buscando evitar que o desmatamento se espalhe ainda mais para o interior do estado.
"Não podemos chegar no cenário em que está o Pará, onde praticamente todas as regiões do estado tem zonas críticas de desmatamento", diz Fonseca. "O momento para atuação é agora."
Procurados para comentar o plano específico de combate ao desmatamento no Amazonas, o Ministério do Meio Ambiente e a secretaria de meio ambiente do estado não se manifestaram até a publicação desta reportagem.
Fonte: Phillippe Watanabe
São Paulo, SP (Folhapress)