RAFA NEDDERMEYER/AGÊNCIA BRASIL -
É unânime a posição de especialistas ouvidos pela reportagem de que a opção do governo de São Paulo, sob a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), de adotar apenas material didático digital para alunos do ensino fundamental 2 vai na contramão de tendências internacionais e de diversos estudos que mostram menor retenção de aprendizado.
O secretário da Educação paulista, Renato Feder, resolveu abrir mão de 10 milhões de exemplares de livros físicos fornecidos de forma gratuita pelo Ministério da Educação (MEC), seguindo o caminho inverso, por exemplo, da Suécia.
O país europeu adotou a digitalização completa e agora decidiu recuar, afirmando que a decisão poderia transformar a próxima geração de estudantes suecos em analfabetos funcionais. Lá, as consequências negativas desse experimento foram observadas em toda a comunidade escolar.
Alunos perderam o hábito da leitura, professores ficaram sem acesso a livros e pais não conseguem ajudar os filhos.
“Além de a gente não ter nenhum tipo de evidência de que isso funcionou em algum lugar do planeta, aplicar o 100% digital aqui no estado de São Paulo, sem nenhum estudo prévio, praticamente do dia para a noite, é algo que beira uma irresponsabilidade de gestão pública, o que é bastante preocupante”, avalia Priscila Cruz, presidente-executiva da organização Todos pela Educação.
“Ter a leitura de livros digitalizada não é o caminho que nos parece mais eficiente do ponto de vista de assegurar o aprendizado dos alunos. O modelo híbrido seria uma boa experiência”, completa a educadora.
Jaciara Cruz, mestre em empreendedorismo social pela Universidade de São Paulo e diretora-geral da consultoria educacional Ideias de Futuro, ressalta que o contato com material escolar físico beneficia crianças com necessidades específicas.
"Alunos com déficit de atenção, autismo ou com outra neurodiversidade necessitam de uma interação mais física, concreta, para construir seu conhecimento. O livro tem um papel relevante no seu aprendizado. O ato de pegar, ler, reler e grifar é impactante. Nesse sentido, limitar o acesso ao conteúdo apenas pelo viés digital é uma medida excludente", avalia.
Exposição às telas e herança da pandemia
O mais recente relatório da Unesco, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada para educação, ciência e cultura, sugeriu que as escolas de todo o planeta proíbam o uso de smartphone dentro de sala de aula.
A agência afirma que existem evidências de que altas doses de exposição às telas também podem afetar negativamente a estabilidade emocional dos jovens. Segundo a Unesco, a interação física entre professores e alunos não pode ser substituída por opções digitais.
A adoção exclusiva do material digital, que abre mão das obras do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e deve ser estendida ao ensino médio, também é um contrassenso, por ter ficado evidente a falta de estrutura tecnológica das escolas e dos familiares dos estudantes durante a pandemia de Covid-19.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2022, das escolas municipais brasileiras de ensino fundamental, 38% dispõem de computador de mesa, 23,8% contam com computadores portáteis, 52% têm internet banda larga e 23,8% oferecem internet para uso dos estudantes.
A Unesco ainda ressalta que uma de cada quatro escolas de anos iniciais do ensino fundamental do mundo não tem eletricidade.
Acesso à informação
“É importante considerar que nem todos os alunos têm acesso equitativo a dispositivos eletrônicos e à internet. Ainda há parcelas significativas da população que enfrentam desafios de conectividade e acesso à tecnologia, o que pode gerar desigualdades no aprendizado”, alerta Alexandre Rohlf de Morais, advogado especializado em defesa do consumidor.
Segundo ele, não se pode privar ninguém, seja quem for, do acesso à informação. “Aqui, onde recente pesquisa mostrou que 40% da população tem algum tipo de problema de acesso a informações online, isso é ainda mais grave. Podemos até ter o digital, mas nunca sem o físico também”, completa o advogado.
Idealizador do curso Enem gratuito, voltado especialmente a jovens de escolas públicas, João Vianney lembra que o conteúdo do material digital produzido pelo governo paulista não pode fugir da Base Nacional Comum Curricular, o que prejudicaria o desempenho dos alunos no Exame Nacional do Ensino Médio, por exemplo.
"Ficar fora do programa [Nacional do Livro Didático] gera uma perda financeira importante de recursos federais que seriam transferidos para o estado e também um risco didático, uma vez que os principais vestibulares do país se guiam pelos resultados do Enem, e o Enem é desenhado na esfera federal. Então, o estudante paulista corre o risco de ter sido menos exposto a nuances de conteúdo que podem se refletir no exame nacional", completa Jaciara Cruz.